Um Golpe do Destino (The Doctor) é a história do médico Dr. Jack McKee,
cirurgião competente, mas que vê as pessoas como máquinas e seu trabalho como
de um reparador delas. O próprio McKee
ensina aos médicos residentes que o necessário a ser feito em relação a uma
cirurgia é “abrir, consertar e fechar”.
Na primeira cena do filme se vê um procedimento cirúrgico na sala de
cirurgias com música e muita conversa. A
despeito da competência de toda equipe, o paciente não é encarado como um ser
humano, apenas como u’a máquina danificada.
O médico fica muito distante do paciente, de seu problema, de sua
história de vida. O foco é a cirurgia e
o “conserto” do defeito. Em certa
medida, creio que há eficácia no método, visto que o paciente foi submetido a
uma cirurgia realizada por um cirurgião competente que, de fato, fez o
certo. O problema está na distância
entre o médico e o ser humano do outro lado.
Tema similar vem sendo tratado na série de TV “House”, onde o que
importa para o médico protagonista é a solução de um problema enigmático, nada
importando quem é ou o que sente o paciente.
Somos complacentes nesses casos, pois o final é feliz com a solução do
problema, mas se pode aferir que todo o processo seja menos penoso e com maior
adesão ao tratamento nos casos em que há a aproximação entre equipe médica e paciente
de forma mais humana e menos técnica.
Golpe do Destino mostra de forma clara as consequências de uma sociedade
capitalista e individualista. Cada qual
preocupado consigo próprio. O “outro” é
algo existente para ser usado como uma ferramenta. Uma sociedade onde os méritos estão
relacionados com a produção e com ser produtivo. A dinâmica de produzir resultados leva ao
distanciamento entre a sensibilidade, a compaixão, o amor e o fato diário:
reduzir custos, aumentar lucros e ter sucesso.
Isso tudo de forma individualista.
O médico do filme tem uma família que comemora quando ele está presente
numa noite na semana. A distância entre
pai e filho traz uma criança que não ouve o pai numa conversa corriqueira,
porque também tem tempos e tarefas a cumprir.
A relação com a esposa é, a primeira vista, de muita ligação, mas a ela
importa como ela vai estar diante dos problemas. E exatamente esse distanciamento é a marca do
Dr. McKee, que relaxa com brincadeiras tanto na sala de cirurgia, quanto
fora. O momento em que ele se vê diante
de um câncer ainda não é suficiente para que haja o entendimento de que há,
pelo menos, dois lados: paciente e médico.
A princípio o médico doente é tratado por uma sua colega, tão mais fria
e distante quanto ele. Uma médica
mecanicista, rude e grosseira, que ignora qualquer tipo de contato mais
afetuoso, tratando sempre da doença e nunca do paciente.
Dr. McKee passa a ser paciente, mas quer manter os privilégios de ser um
cirurgião conceituado no mesmo hospital.
A sociedade na América do Norte, em relação à nossa, é mais distante em
seus relacionamentos, traço cultural de sua origem, o que faz as pessoas
sentirem falta de mais afeto apenas quando suas vidas estão em risco. Esse contraste fica claro quando Dr. McKee
conduz o tratamento de um paciente (de origem latina) que necessita de
transplante de coração. Ele agradece e
confia no médico e lhe dá um abraço, algo muito estranho para os americanos do
norte. Voltando, o médico doente, agora
paciente, se vê às voltas com toda a burocracia do hospital e com a frieza de
alguns atendentes. Passa por erros de
procedimentos quando é submetido a uma desnecessária lavagem intestinal. Sua médica pede desculpas. Ele mesmo conclui que a expressão “sinto
muito” deveria ser abolida, pois tudo se explicava assim sem maiores consequências. O médico passa a perceber o sofrimento de
cada um e o seu próprio. A angústia da
morte iminente em sua nova amiga, que tendo um tumor na cabeça luta contra o
tempo. Ele vê pacientes que morrem e
outros que na fila da quimioterapia recebem a notícia e se colocam na mesma
posição. Sua percepção do que seja um
contato humano muda completamente e ele passa a entender a importância de uma
relação paciente-médico muito mais próxima, encarando o paciente como um ser
humano e não como u’a máquina com defeito.
Uma revelação contundente se dá quando sua nova amiga lhe fala que os
médicos levaram três meses para diagnosticar seu tumor cerebral. Dr. McKee, em outro momento, explica que se
tivesse feito uma tomografia computadorizada seria possível diagnosticar seu
problema, mas são as seguradoras, os planos de saúde, que definem quais exames
podem ser feitos, pois o tal exame custaria mil dólares. E assim temos um quadro onde de um lado há o
poder
Os relacionamentos interpessoais do médico protagonista são
utilitaristas. Sua esposa fica magoada
ao saber que ele partiu em viagem com sua amiga. No dia seguinte, ela o encontra e diz: “você
está acabando comigo”. A sociedade
individualista se mostra ali de forma crua e cruel. O filho não tem a referência paterna como
alguém próximo e quase não sorri, sempre com a expressão triste. Seu grande amigo médico pede que ele
testemunhe em um caso judicial, mas esconde que havia adulterado fichas e
laudos médicos para encobrir um erro.
Todas essas relações passam a ser questionadas e começam a ser vistas
com outra lente pelo Dr. McKee. Sua
experiência direta com a realidade dos pacientes o faz perder a arrogância e
enxergar o dia-a-dia de quem sofre e precisa de tratamento médico. Ele encontra na nova amiga June a compreensão
de quem também tem uma doença grave.
Dr. McKee passa a ver pessoas onde havia números e doenças. Ele passa a exigir de seus residentes que
saibam o nome de quem está sendo avaliado.
Ele não admite mais que um paciente seja classificado como “terminal”,
admitindo somente que o paciente esteja vivo ou morto. E enquanto vivo merecedor de todos os
cuidados destinados ao ser humano.
CONCLUSÃO
Numa sociedade capitalista a equipe médica, o paciente e o hospital não
são as únicas variáveis envolvidas. Há o
braço frio das seguradoras, dos planos de saúde, que remuneram mal as consultas
médicas e restringe exames caros. Tudo
em nome do lucro. Não importa quem é o
paciente, pois esse é apenas um número que deve ser trabalhado pelas
estatísticas no intuito de se reduzir custos.
O médico, de forma generalizada, participa dessa roda-vida e vai, pouco
a pouco, se desumanizando, se distanciando do ser humano que é e do que está
sendo tratado. O filme nos mostra todos
esses lados. As tintas são ainda mais
fortes, pois a história se passa nos EUA, onde o capitalismo tem seu domínio
absoluto e, ainda, numa sociedade extremamente individualista onde o outro só
interessa como um meio para se atingir algum objetivo. Os exemplos no filme vão desde o próprio Dr.
McKee, passando por sua esposa, seu amigo médico e pela médica que o
avaliou. Exatamente o médico mais
criticado pelo grupo do Dr, McKee, chamado por eles de Rabino, é o que
apresenta o contato mais humano com os pacientes. A ele o Dr. McKee confia sua cirurgia sendo
amplamente acolhido pela equipe. Dr.
McKee se recupera e começa a reconstruir os significados à sua volta, numa nova
relação com os pacientes, com a esposa e com o filho, a partir de uma nova
relação sua com o mundo. O Psicólogo
pode ter um papel importante ao fazer essa mediação entre os diversos agentes
envolvidos, buscando maior entendimento entre as partes, resultando, ainda, na
maior adesão ao tratamento.
BIBLIOGRAFIA
UM GOLPE DO DESTINO. Filme. Título original:
The Doctor. Direção : Randa
Haines. Duração: 122 m. Gênero: drama. EUA. 1991.