segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Cadê a minha festa joanina que estava lá?

A véspera de São João, em grande parte do país, é equivalente à véspera de Natal em outra parte. Aguarda-se a data com muita animação, pois há um significado muito grande. Além do simbolismo católico da fogueira acesa por Isabel para avisar Maria do nascimento de seu filho João, que posteriormente batizará e se tornará o batista, também coincide com o tempo de fartura com a colheita do milho. E isso não é desprezível, pois os irmãos que moram no nordeste sempre conheceram a miséria dentro de casa, patrocinada pela má intenção de manter a ignorância, a dependência e os currais eleitorais. De outro lado, há muito tempo eu não ia ver de perto os festejos de São João no interior da Bahia. Confesso que não tinha muita esperança, pois escutei relatos desanimadores ao longo dos últimos 20 anos. Mesmo assim – o ser humano é teimoso demais – fui ver a festa. Encontrei outro mundo. Ao invés das tradicionais fogueiras colocadas nas ruas, havia a proibição expressa da prefeitura de que não se poderia acender nada em cima do asfalto a fim de preservá-lo. Veja você, mesmo com o fogo da fogueira queimando para cima, o calor pode danificar o asfalto, imagine o sol e os carros passando. Talvez se a pavimentação fosse decente, com sub-base e outras coisas, o asfalto sobreviveria. Só para se ter uma ideia, nos Estados Unidos a profundidade do piso, onde vão rodar carros e caminhões, é de 30 centímetros! Na Europa, 40 centímetros, isso incluindo camadas de brita, concreto, areia e, por fim, como acabamento, o asfalto. No Brasil, a profundidade chega a ser de 8 centímetros ou menos e é só um pouco de brita e asfalto. Daí não é difícil imaginar que uma fogueira de São João vá danificar o asfalto. E a pobrezinha da fogueira será culpada, junto com quem acendeu, pelos buracos que o descaso, a chuva ou o calor trarão. Logo entendi que eu não ia poder ficar ao lado da fogueira jogando umas bombinhas para estourar, nem assar uma espiga de milho, nem ver o crepitar gostoso do fogo. Bom, mas restava ouvir o tradicional forró "pé-de-serra", aquele onde há um trio composto de sanfoneiro, zabumba e triângulo. Procurei me informar onde eles se apresentariam e só ouvi risos e suspiros. Risos porque olhavam para mim com um ar arqueológico de que esse tipo de coisa só acontecia no Egito Antigo. Suspiros dos mais velhos, que sabiam do que se tratava. Em suma, não existia mais. No entanto, de vários anos para cá as prefeituras, sempre pensando no bem estar de seu povo, montam um palco gigantesco no meio da praça e colocam "bandas" de forró. Quando você as ouve percebe que o forró só está no nome. Seria mais honesto batizar de outro nome o tipo de música que elas fazem (considerando que aquilo é música). A praça repleta de gente, pois não há alternativa, olhando para os lados caçando companhia. Dançar? Sabe que isso até acontece! Ouvi dizer que essa indústria de bandas e shows pelo interior foi algo adotado imediatamente pelas prefeituras, pois conseguiriam superfaturar os shows e embolsar a diferença. Acho que isso é comentário de gente invejosa, pois essa prática não acontece no Brasil.
Então é a hora do show. Bebida típica? Cerveja. Sim, a mesma que promove tsunamis no verão. Cadê meu licorzinho? Só nas casas. Sabe como era isso há 15 ou 20 anos? As pessoas faziam suas fogueiras em frente às casas, que ficavam de porta aberta para receber quem chegasse. As pessoas saiam para fazer suas visitas, comiam alguma coisa típica, bebiam um licorzinho e iam para a próxima casa. Um sensacional exercício de socialização e alegria. Hoje, essas famílias têm medo de abrir o portão da rua, quanto mais a porta de casa, porque sabem que quem vai chegar são ladrões. Graças à incompetência nacional em resolver questões sociais que levam à violência, todos se trancam. O comentário dessas famílias é de uma resignação frustrante: o que se há de fazer? É a triste constatação que a violência se tornou algo natural. E por falar nisso, procurei também uma quadrilha típica com gente vestida de caipira e dizendo "olha a cobra", "caminho da roça", "anarriê", "alavantú", "balance" etc. Perguntei onde eu poderia ver essas quadrilhas e a resposta mais frequente foi que eu procurasse em Brasília, que é onde estavam as grandes, mas, se eu quisesse algo menor, poderia achar por ali mesmo perguntando a algum político. Não entendi direito o que isso quis dizer, mas acho que é porque os representantes do povo estão atentos às folias populares.
Quando se vê o conjunto da obra com cerveja, bandas sertanejas tocando qualquer te-re-te-tê, nenhuma música de Gonzagão, camarotes e gente vestida de cowboy americano, nos resta sentar no chão de asfalto frio e constatar novamente que o capitalismo devora tudo que vem pela frente. Uns dizem que a Grande Prostituta citada no livro do Apocalipse é o comunismo, mas é o capitalismo, que se vende e faz qualquer coisa por dinheiro. Não que o comunismo funcione, aliás, só é fachada para algumas ditaduras. A máquina de ganhar dinheiro não pode parar e continua devorando culturas regionais, pasteurizando, homogeneizando e nivelando tudo por baixo. A ideia é que todos consumam algo que tenha mercado e possa ser produzido em massa para obter economia de escala na produção e aumentar o lucro. A parte triste é que as novas gerações aceitam isso sem a menor resistência, muito ao contrário, são convencidas de que folclore, cultura regional e sanfoneiros são coisas de gente velha. Tudo pela modernidade. Só o novo é bom, por isso troque suas coisas velhas (televisão, carro, celular, festas populares etc.) por coisas modernas e muito melhores que as anteriores. Assim como uma nova geração de celulares pretende ser melhor que a anterior, uma nova geração de pessoas pensa que é melhor que a anterior. Dessa forma, gente e aparelhos são a mesma coisa. Essa é a lógica perversa das sociedades pós-modernas, que empurra a todos para não ficarem velhos e obsoletos, mesmo que usando de estratégias como a obsolescência programada, quando, por exemplo, se lança a versão 10 de um produto e já se tem a versão 15 pronta e bem melhor aguardando as anteriores serem consumidas.
Lá no interior onde estive, vi focos de resistência e rebeldia. Pessoas ignorando a determinação da prefeitura e acendendo suas fogueiras em cima do asfalto. Vi algumas mesinhas colocadas na frente das casas com licor e milho. São os "velhos" fazendo sua festinha saudosista, enquanto na praça a juventude curte sertanejos universitários, o que prova que nossas universidades pioraram muito. Uma pessoa culta me disse que devo encarar a realidade e desapegar do passado. É como na música "Como nossos pais" de Belchior cantada por Elis, que diz que "o novo sempre vem". Ele pode vir, mas precisa matar o que veio antes? O sujeito ainda me disse que aquela música é a que a juventude gosta. Quer dizer que em nome da modernidade devemos esquecer Bach, Mozart, Ataulfo Alves, Louis Armstrong, Luiz Gonzaga e tantos outros? Triste geração alienada e conduzida, que chafurda nessa lama nojenta e fétida chamada pós-modernidade. Por que algo que vem tem de eliminar algo que já estava aí? Por que as coisas não podem coexistir em harmonia sem que um não devore o outro? Simples: para dar lucro.

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